sexta-feira, 27 de abril de 2012

Percebi o quanto estou sem escrever, quando hoje me arrisquei a desenhar algumas palavras que, acredito eu, deveriam saltar dos meus dedos. Pensei sobre os motivos que, quem sabe, me teriam afastado daquilo que durante tanto tempo serviu como escape, espelho, estudo. E, incrivelmente, notei o tom melancólico com o qual descrevia os sentimentos daqueles que ganhavam vida em minhas doces histórias.Angústia, insegurança e uma saudade doída coloriam monocromaticamente os passos naquelas trajetórias e confundiam o leitor que, diante de suaves paradoxos, não percebia o gole seco de realidade que lhe agarrava as entranhas.

E, agora, quem não os percebe sou eu. Desde o nosso novembro, já não encontro dentro de mim aquilo que um dia alimentou os solos áridos de minha memória. Não há a seca, assim como não há aquilo que se esvai feito água. Nosso pequeno rio se transformou em mar. E levou o que era vida sem Raul.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Diário de campo


Era uma sexta-feira, no fim da tarde, quando o sol se deitava sobre a estrutura branca e recortada do Mercado do Peixe, parecendo amenizar o odor fétido vindo do canal recém reformado. Por entre as sombras que se formavam no espaço destinado às mesas de plástico laranja, ocupavam seus lugares o João, a Maria, o Marcelo e tantos outros que ali, assiduamente, freqüentavam. E, à medida que a luz amarela natural era substituída por um azul petróleo da noite, iluminado pelas lâmpadas do próprio Mercado, o silêncio testemunhado durante poucas horas da tarde cedia lugar às calorosas conversas de funcionários públicos, jovens universitários, trabalhadores braçais e do terceiro setor e de muitos outros, que invadiam o ambiente e se misturavam às ofertas dos garçons: “dobradinha, sarapatel, agulhinha!”, caracterizando como descontraído, popular e, por isto mesmo, charmoso o happy hour com os amigos.


Embora venha de outro estado e, ainda mais, seja novata neste universo tipicamente baiano, mas que se repete com as devidas adequações em diversos outros lugares do Brasil, observava – nesta mesma tarde – um caráter duplo do tradicional Mercado do Peixe e, com meus botões, enquanto ouvia duas colegas se apropriarem (com desenvoltura, segundo a minha pouca experiência) das técnicas de pesquisa qualitativa, utilizando-se de um roteiro semi-estruturado para sua entrevista, aproximava o famoso Mercado Central, tão mineiro como apenas ele, daquela realidade que se me apresentava.


Dois redutos de tradições e costumes que, autenticamente, demonstram contemporaneidade e certa sofisticação: era a conclusão a que chegava após percebê-los como fortes instrumentos de resistência (ainda que não desvinculados) a uma cultura de lightização dos padrões alimentares e corporais. Contemporâneos pelo seu caráter boêmio; sofisticados pela valorização do tradicional, daquilo que agora se faz diferente e incomum. Representam, assim, cada um em sua cidade, espaços sociais onde se permite “esfriar a cabeça” com uma cerveja gelada e esquecer o controle ditador de regras e passos para uma vida saudável.

Agora, alguns dias depois desta visita, me esforço por lembrar o nome do único entrevistado que silenciosamente acompanhei. E percebo certa ironia ao recordar apenas o seu peso: 108 kg. Sem conhecer devidamente o roteiro elaborado para a pesquisa em questão, a cada contradição e engasgo emitido pelo jovem de 23 anos que se propôs a colaborar com nosso trabalho, eu ansiava por perceber as nuances de suas respostas e as entrelinhas que poderíamos, posteriormente, desenvolver.

Percebia, então, algo sutil a revelar-se em seu humor, presente durante quase toda entrevista, sobretudo quando o questionamento parecia incomodá-lo ou fazê-lo refletir sobre suas escolhas e a maneira de perceber e lidar com o próprio corpo; em seu modo de concluir as frases com um “?”, ora direcionado aos seus amigos (nenhum acima de 80 kg), ora direcionado às entrevistadoras; e em sua firmeza e segurança ao definir-se distante das exigências estéticas, internalizadas como únicas e obrigatórias pela maioria. Percebia, também, as estratégias utilizadas para justificar suas dissonâncias, quando ele mesmo parecia notar-se contraditório. Desta forma, a cirurgia bariátrica pôde ser explicada com a incansável insistência de sua mãe, preocupada – antes de tudo – com a saúde do filho; a manutenção de seu peso corporal, a despeito da insatisfação confessada após alguns bons minutos de conversa, pôde, por sua vez, ser atribuída ao maior valor conferido aos momentos de descontração com os amigos (sempre em uma mesa de bar) e; finalmente, o sedentarismo justificado como um fim inescapável já previsto para sua vida – ele, que desde criança era o gordinho da turma, nunca se enxergou capaz de mudar seus consolidados hábitos.

À medida que juntos, sutilmente, construíamos estas percepções, nos aproximávamos daquele raciocínio que conduziria aos significados e sentidos relacionados à noção de “corpo” – principal objeto de análise do estudo. E assim, ao reconstruir o momento, vejo agora a imensidão de subjetividades impregnadas na tentativa, quase frustrada, de definir o conceito: “ah, corpo, corpo... difícil. Corpo é aquilo que carrega... (...); acompanha. Sei lá, não sei. Essa a gente pula”.



PS. Este texto é um diário de campo feito a partir de vivência proporcionada pelo projeto Corporalidade e Comensalidade, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura - UFBA.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Estar só.

Agora à noite, enquanto descanso meus braços na janela e permito ao vento recortar meus cabelos, olhos e lábios, vejo a vida se refazendo após um dia de trabalho. As luzes pequenas e distantes, de um brilho esvaído e quase silencioso, bordam histórias que não são minhas.

Através daquelas janelas, do meu lado cru, real, calado, ouso sair para embarcar em emoções que já não posso sentir. Imóvel, permaneço imersa em pensamentos anestésicos, espelhos de um mundo cão que não me deixa respirar. Passo horas assim, imaginando - por ventura - qual a força capaz de me tirar a letargia. Cansada de tantas aventuras alheias e ausências (im)próprias, me ajeito calmamente por entre a cortina entreaberta e por ali continuo, a observar as luzes que se acendem. E se apagam.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O ar seco e os raios duros do sol recortavam a terra árida de um sertão escondido. Pouco ventava e o que era possível ouvir angustiava a alma. O silêncio se fazia Senhor e permitia, apenas à respiração ofegante, acompanhar os cascalhos se acomodando conforme a passagem da moça. Seus pés descalços, já grossos e emoldurados pela escassez nordestina, abriam o caminho longo que, quem sabe, poderia lhe levar a algum açude próximo. E a saia longa, amarrada por entre as pernas - leitos de rios azuis avermelhados que por ali não se via sequer de outra cor - por vezes arrastava a poeira para junto de si, misturando sua pele e sua roupa à paisagem sépia que parecia agora extensão de seu corpo. Os galhos retorcidos e abundantes se identificavam àquela única que se movia abaixo das poucos nuvens, espaçadas num céu alaranjado pálido. E o suor, escorrendo pelo rosto vermelho e triste, passeava pelo retrato do chão rachado, estendido à sua frente. O contato daquelas gotas com a superfície epidérmica, um dia mais feminina, servia para lhe aliviar o peso trazido em suas têmporas e chegava a lhe refrescar quando, inutilmente, o vento (pretensioso) tentava soprar por aquelas bandas. Em alguns momentos parava. Com um movimento de sua caixa torácica, introduzia em seus vasos e pulmões - rios e poços interiores - parte daquela aridez incômoda. Passava as mãos pesadas sobre a testa e retomava o passo trôpego. Ainda estava, incrivelmente, distante do azul líquido que procurava.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Ainda sinto um cheiro antigo na sala
O largo sorriso continua estampado pelos cantos
E o barulho das folhas, lá fora, ficou ensurdecedor
Talvez seja o silêncio encantado de sua voz ausente

A saída da última casa da rua com cheiro da canela lhe fez bem
Mora agora no quarto com vista para as estrelas
E lá do último andar, o céu cúmplice é seu companheiro
Fantasiam conversas a noite inteira

Dorme junto aos bilhetes e retratos colados no armário
E chega falando dos sonhos que teve durante a madrugada
Talvez seja a tranqüilidade de ver a menina morando ao lado
Mas é a partida misturada com chegada

Bem sei dos seus planos cheios de vida
E os olhos brilham ao falar dos caminhos a percorrer
A distância alimenta alegremente a saudade
Na esperança de encontros próximos durante o amanhecer.


* Este texto foi escrito por Raul Spinassé, o mais novo fotojornalista da cidade-cor: direto da cidade das águas.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Devaneios julinos

São dezessete cadeiras à minha frente. Todas vazias, reluzindo ao calor do sol o branco limpo de uma manhã sem nuvens. Do salão, posso ouvir o barulho da vida lá fora: são carros que se apressam, pessoas que se cruzam, um avião que passa, vozes que não calam. Posso ouvir nosso mundo de dez dias. Do refeitório chegam até mim sons de esperança. São sorrisos alegres que nos exclamam o verdadeiro - o todo é, realmente, maior que as partes. E não ouço nada dentro de mim. Chego a me perguntar se um dia já ouvi.
Aos poucos, as cadeiras são preenchidas, uma a uma, pelas mais lindas e coloridas jóias. Embora jovens, são elas imensos repositórios de qualidades e mudanças. São as pérolas da mudança. Uma criança sorri e correndo se dirige ao centro. Em suas mãos não há muitas linhas. São mãos tão lisas... Diferentes daquelas que me acompanham por vinte e um anos: mãos já calejadas, já marcadas, já castigadas. Nem parecem mãos de uma jovem. Sem ter elas qualquer culpa, sozinhas, são a única porta pela qual todo o meu mundo se revela.
Será essa minha única compreensão sobre o meu mundo? Linhas marcantes, frágeis, contínuas e recortadas.
Um cachorro late e me chama à realidade. O vejo magro e marrom atravessar a grade da porta de ferro. Olho para Raul e o sinto bem próximo a mim - é o seu sorriso revelador dos nossos segredos e planos. Olho para as suas mãos e as vejo firmes e seguras. Tranquila, suspiro aliviada, pela certeza de que serão essas as responsáveis por, nas minhas mãos, fazer o sertão virar mar.

terça-feira, 13 de julho de 2010

O menino segura em suas mãos uma bola
De longe, já posso vê-lo.
Momentos tão graciosos...
Bailarino que és, dança seu futuro
E comemora os doces suspiros
que por hora lhe são concedidos.

O menino lança as mãos para o céu.
É bola solta no ar
E quando, imensa e redonda, beija seus pés
Se abre em riso frouxo. Largo. Espontâneo.
Ansioso por conhecê-la por inteiro,
ele rapidamente a apanha e a toma em seu colo.

É quando percebe: há vida ali!
Tão perto de si...
Menino e bola dançam
E embora a princípio pareçam ouvir diferentes melodias,
já posso fitá-los em sintonia.

Há vida. E há também sintonia.
A bola, até aquele instante espelho de cor,
torna-se intensamente azul.

E o menino com sorriso nos olhos -
sabedor das alegrias por vir -
festeja o azul.
O maior que há no mundo!

Há vida aqui.
De dentro do menino vejo:
Há vida!
E ela é azul.