sexta-feira, 23 de maio de 2008

Seus pés,



Os pés dela hoje pareciam inquietos. Ainda era quinta feira e muito estava por fazer: terminar de ler o texto da prova, preencher os questionários de um trabalho, fazer o cartaz do estágio. Ah, mas seus pés. Seus pés se tivessem um pouco mais de autonomia do restante do corpo – esse corpo por muitas vezes incapaz de acompanhar o ritmo do tempo e talvez por isso, em especial o dela, se mostrasse sempre tão desengonçado, com as mãos, as pernas, qualquer outro membro, ou todos eles, fora de lugar (com exceção dos pés) – já teriam tudo por terminado, tamanha a ansiedade.
Mas o que as pessoas não compreendiam, e nem poderiam, é o sentido aplicável de “ansiedade” naquele contexto. Seus pés, maltratados desde a época da capoeira, quando foram obrigados a se adaptar à aspereza diária do chão da academia, do passeio onde aconteciam as rodas ou da própria rua asfaltada, eram os únicos membros de seu corpo seguros de si. Sem qualquer compreensão metafórica, eles sabiam onde pisavam. Sabiam se articular.
Quando Ela descobriu o forró, não havia percebido que o mérito de tal descoberta não seria conferido a si. Eram eles, os seus pés, os grandes responsáveis por apresentar a Ela o canto de dor, emoção e, sobretudo, superação do povo do sertão. E foi assim que Ela se encantou com Luiz Gonzaga e seus sucessores, capazes de, num contexto completamente urbano e individualista, manter um refúgio para a cultura brasileira, para a paz, para a alegria e para a unidade entre tanta diversidade. E foi assim também que os pés dela encontraram consolo.

Um comentário:

Thonni Brandão disse...

Esses são pés alegres, com certeza. Daquele tipo de pés que quando enfrentam a dor, calejam, mas não sangram. Como pode haver pés assim tão fortes? Mas eles existem, ainda que bem longe daqui.

De meu lado, os pés são tristes. Sentem o peso do mundo e sangram. Seria a alegria uma benção concedida a Deus para poucos, seus eleitos? Ou a tristeza congênita é um fardo que se carrega até uma futura redenção triunfal? Tem de haver sentido nisso tudo...E a dor dos passos não pode ser em vão...