quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Trio dos sonhos

Triângulo. Seus melhores amigos eram a sanfona e a zabumba. E apesar de toda essa amizade, não precisavam tocar no mesmo trio: o que os ligava eram os passos daquela menina. Quando se sentia feliz, como naqueles finais de semana que já estavam se tornando habituais, era capaz de dançar! Absurdamente, deixava seu trim trim trim embalar sua própria dança – movimentos desengonçados, que iam do samba ao maculelê, candomblé ou coisa mais parecida a um ataque epilético. Mas o que o deixava mais realizado, era quando seu dono, moço bonito dos olhos de mar, cantava as modas do sertão e traduzia em forró pé de serra, todo o seu amor por aquele ritmo. A emoção era tamanha, que nas mãos daquele mano véio dos olhos verdes, triângulo tilintava como nenhum outro e transmitia seus melhores sentimentos aos forrozeiros de plantão, que se balançavam à sua batida.

Zabumba. Particular como só ela, guardava um mistério capaz de colocar medo naquela forrozeira, ainda menina. Seu som, diferente de si, já era por ela bem conhecido, mas nunca previsível. A menina via-se, sempre, surpreendendo-se com o bum, que parecia gritar para ela, qualquer coisa impossível de discernir. No entanto, quando era possível observá-la bem de pertinho, como pouquíssimas vezes foram possíveis, podia-se notar o mesmo brilho e alegria do triângulo. Sim, a zabumba deixava toda sua aparente prepotência e vestia-se de uma emoção quase infantil, compreensível só por aqueles que amam tocar e que encontram na música razão para viver. E quando isso acontecia, ela também olhava para a menina e, embora ambas não entendessem porque se olhavam, admitiam uma paixão em comum e mandavam, juntas, apagar o lampião, “que a dança só é boa na escuridão”!

Sanfona. Ah, foi a sanfona quem realmente conquistou aquela menina – bonitinha – que admirava o triângulo e gostava da zabumba. Não se pode dizer ter sido paixão à primeira vista. Foi curiosidade. A menina, em frente ao palco, revelava-se pequena diante de toda imponência do fole e esforçava-se para entender como aquele “cabra macho” tão pequenininho era capaz de guiar o som à sua maneira, fazendo seu coração bater e seus olhos não obedecerem mais às suas ordens. Tudo a sua volta era a sanfona. E o dono da sanfona. E melhor do que ouvi-los, era descobrir-se cada vez mais encantada com aquele universo. “Até os pisões de pé, nos forrós, tornavam-se suportáveis”.

O trio. Não de forró, mas de forrozeiras. Nem o triângulo ou a zabumba e a sanfona conseguiriam, naquele contexto, compreender e fazer jus à amizade que brotava tão recente e já tão madura. Importância dos três instrumentos à parte, quando elas dançavam, não eram mais as pequenas diante do palco. Eram grandes. Eram felizes. E eram, antes de tudo, afinadas àquela realidade. Àquela realidade que delas era.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Top Marcas

- Bom dia! O senhor é lojista?
- Bom dia. Sou sim.
- Preenche, por favor, o cadastro ali no balcão? Um só por razão social é suficiente.
- Esse ano de novo? Tem que cadastrar todo ano? Ai, meu Deus.
(...)
- Boa tarde! A senhora é lojista?
- Não.
- Representante?
- Não.
- Fabricante?
- Não.
- Curiosa?
- Sim.
- A feira é só para lojistas. Mas vou liberar pra senhora, com crachá de visitante. Seu nome, por favor.
(...)
- Boa noite! Esqueci meu crachá no hotel. Luiz Eduardo, estande 411.
- Bom dia! Preciso entrar pra encontrar meu marido que está visitando a feira.
- Boa tarde! Sou representante e lojista, como faço pra entrar?
- Bom dia! A feira vai até que dia?

Meu Deus, posso parar pra tomar uma água?

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Flor de Lis



Joana sentia-se sem ar. Queria procurar o lugar mais arejado do forró, um ventilador ligado ou uma janela que permitisse qualquer resquício de brisa, capaz de varrer dali tudo aquilo que estava sentindo. Mas não era possível. Ela não conseguia desviar, por um segundo que fosse, os olhos daquela barriga.

À sua frente, uma mulher desconhecida, ainda com cara de menina, não fosse aquela barriga, anunciando 4 meses. Joana nunca a tinha visto, mas sabia o seu nome, onde morava e talvez parte do capítulo mais importante de sua vida. E naquele momento, em que encontravam-se tão próximas, ela pôde compreender - como mulher que Joana também era - o significado de possuir uma florzinha em desenvolvimento dentro do ventre.

Seu coração palpitava e o ar parecia tornar-se mais denso e escasso. Era uma menina. Ela já não ouvia as músicas que tocavam nem as pessoas a sua volta. Como se chamaria a criança? Joana não ouvia nem aqueles que a chamavam para dançar. Será que irá se parecer com quem? Com o pai ou com a mãe? De pé, diante do grupo de amigos daquela mulher que lhe prendera tanta atenção e fora motivo de tantos sentimentos desencontrados e inéditos desde julho, quando soubera da notícia, já não sabia onde estavam os seus próprios amigos. Tomara que a menininha não nasça com o tamanho da cabeça do pai. Mas que herde seu sorriso, seu olhar de entendido quando levanta a sobrancelha esquerda e, sobretudo, seu desejo de desenvolvimento humano e espiritual.

“Que barriga linda, levanta a blusa! Quantos meses já?”. Foi o suficiente para Joana voltar à realidade do forró. Ela já sabia a resposta, mas inclinou-se para escutar a voz que iria responder “4 meses!”, essa mesma voz que iria orientar, dar broncas, educar e dizer “filha” incontáveis vezes.

Encontrou os seus amigos e ficou tranqüila em perceber que o ar, aos poucos, voltava a lhe ser suficiente. Dançou, riu, conversou, conheceu gente. Ainda estava abalada com a lembrança dos momentos anteriores, em que se viu absorta em tanta confusão. Mas, aquilo tudo já não lhe pertencia. Joana podia ser livre. Era jovem e muito ainda estava por vir. “Isso deve ser a vida”, pensava ela, percebendo-se um pouco mais madura depois da recente experiência. Na porta do forró, já na hora de ir embora, Joana virou-se para o salão e lançou, docemente, um último olhar àquela mulher. E ela sabia que seria o último.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Predo pelo correio,

Dessa vez ela teria que sair da frente do computador para escrever. Fazia tempo que isso não acontecia, mas era exigência básica da situação: Luiza, você vai ter que usar caneta e papel. Afinal, cartas enviadas pelo correio se escrevem à mão.

As palavras já não fluíam com a mesma facilidade observada na feitura dos primeiros textos, quando pareciam saltar de suas idéias, preenchendo a tela branca do Word. Ela atribuía esse inconveniente bloqueio à nova versão que assumia, pela quarta vez, desde que ingressara na vida universitária. “Uma vida por semestre”, pensava ela no início do seu quarto período, acostumando-se a perceber vários ela, eu e Luiza dentro de um mesmo corpo – que, por pouco não atingiria 1,60m.

Olhando para si, ela não conseguia entender como que, no interior daquele ilimitado espaço (1,60m apenas!), encontrava-se tamanha multiplicidade. E foi preciso olhar para ele, que estivera sempre ao seu alcance (com seu semelhante 1,60m), apesar de tão distante, para compreender o que lhe parecia incoerente. Ele, 19 anos, de sobrenome Oliveira Azevedo.

Hoje, ela, com também 19 anos, já não se lembrava mais a primeira vez em que escutou a professora dizer Pedro Henrique durante a chamada. Como o tempo havia passado rápido! De pega-pega no pátio do colégio, às festinhas com direito à presença da “querida professora”, não se esquecendo da descoberta das primeiras letras, sílabas e palavras, eles chegavam agora à vida adulta. E isso seria, durante aqueles dias de correria e estresse, resumido a depoimentos no Orkut, conversa jogada fora no MSN e, quando muito, no telefone para matar as saudades. Não fosse aquela segunda-feira.

Receber notícias de seu amigo pelo correio lhe fez perceber quão prepotente é a tecnologia. Toda essa modernidade, que se diz capaz de encurtar a distância, nunca lhe fez sentir tão próxima de alguém quanto aquela cartinha de duas páginas.

Ela já sabia de muito daquilo que estava escrito ali: rotina de estudos e estágios, carteira de motorista nas mãos, saudades e lembranças de um tempo que não volta e de amigos que já não fazem parte de nossa rotina. Mas, ler tudo aquilo, escrito pelas mãos de um dos seus mais antigos amigos, reavivou todo o carinho que sempre existira dentro de si e a permitiu ler além daquelas linhas: eles eram amigos de verdade. E eram amigos para sempre.

Tinha medo de sua resposta não ser à altura. De não conseguir retribuir tamanha simplicidade, sinceridade e amizade. Além disso, sua letra já não era das mais bonitas. Na faculdade, quando alguém lhe perguntava “o que que tá escrito aqui? É mandarim?”, ela gostava de lembrar - e contar, claro - do amigo que dizia ser a sua letra (o mandarim dela, dá pra acreditar?!) a mais linda da sala, com toda a pureza de uma criança aos 7 anos de idade.

Pronto. Sua resposta estava feita. Não como desejava ou escrita à mão. Mas carregada de saudades e alegrias. Torcia para que ela chegasse rápida ao endereço escrito no verso do envelope: a tempo dele lê-la antes de acessar o Blog. Afinal, sua ansiedade condizia com as facilidades tecnológicas - ela não estava habituada a cartas e correios.