terça-feira, 22 de setembro de 2009

Na Jaqueira,

As crianças aqui brincam de chimbra. Passam o dia com chinelo de dedo e bermudinha, enquanto correm pelas ruas da Jaqueira. Seus joelhos guardam as marcas de cada brincadeira, os lembram de cada tombo e de cada dor. "Gostosa essa dor da infância". As bicicletas não param nem por um minuto. Aquele par de rodas é guiado, a cada volta, por uma criança diferente: apesar de levadas, aqui elas sabem dividir.

As brincadeiras se misturam aos sons vindos do bar - de uma gente que não tem trabalho fixo. Aos cheiros dos cachorros soltos na rua. E ao perfume das mães cansadas pelo serviço de casa.

Algumas já sabem cozinhar e varrer o chão. Outras não fazem mais que brincar. Poucas estudam. São crianças, apenas. E, às vezes, nos esquecemos disso. Perdemos a paciência quando o choro é estridente e, seguindo nossa limitada compreensão, mimado. Brigamos quando são desobedientes e nos irritamos quando são elas, na verdade, as irritadas.

Meus Deus, quem as ensinará a ter amor? Quem lhes dirá ser, o seu futuro, maior e melhor e mais digno do que jamais se imaginou ser? Que a terra o faça, se permanecerem negligentes os seres humanos, e nunca as abandone. São crianças, apenas.



Por Raul Spinassé - "Infância em meio aos barcos"

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O intrépido abraço

Seu Manoel era um daqueles velhinhos simpáticos. Parecia guardar nos bolsos de sua bermuda azul - a mesma de sempre, mais castigada pelo tempo que ele próprio - o vigor e o espírito dos jovens. Suas palavras carinhosas eram sempre seguidas por um largo sorriso branco, capaz de revelar todos os seus 32 dentes, ainda grandes e bem conservados. O sol, seu amigo e companheiro por tantos anos à beira mar, havia deixado sua marca amarela naquela pele um dia mais lisa e hidratada. Os olhos verdes revelavam tantos mistérios quanto simpatia e amorosidade. Seu Manoel tinha um segredo: ele sabia abraçar com o olhar.
.
Dona Júlia adorava fazer bolos. Para o entardecer vermelho, bolo de laranja. Para a alvorada azul, fubá. Seus dias eram assim, misturados ao cheiro quente vindo da cozinha. Ela era uma daquelas velhinhas lindas! Seus longos cabelos brancos estavam sempre presos em um coque, elegante mesmo quando seguro por grampos, desprovidos de suas presilhas - delicadas como ela mesma. Companheiras inseparáveis de Dona Júlia eram as letras. Mesmo aos 81 anos de idade, ela sentia suas mãos firmes vibrarem ao passar as páginas e seus olhos já cansados procurarem avidamente por aquele conjunto de símbolos, repletos de sentido. Dona Júlia tinha um segredo: ela sabia abraçar com as palavras.
.
Formavam um casal óbvio. Não havia como não imaginar haverem sido, os dois, nascidos um para o outro. Ambos pareciam fechar os olhos quando sorriam e dormiam antes do "felizes para sempre", quando assistiam a um filme. E era sempre no que o outro estava pensando em que pensavam eles - cada um consigo.
.
O outono se aproximava do fim, anunciando a chegada do inverno. E, no frio, era quase impossível segurar sozinho tanta bagagem. Eram 8 décadas de experiências e não dividi-las se tornava cada vez mais doloroso. Foi assim que, inevitavelmente, se descobriram Seu Manoel e Dona Júlia. A partir de então, os dias ganharam cores novas. E todos seriam dedicados ao abraço: enquanto Seu Manoel a olhava, Dona Júlia escrevia para ele.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Por Angela Carolina Simioni

Ah.....ela era assim,
No olhar carregava doces percepções sobre o futuro
Geralmente, nos caminhos que passava, carregava também uma mala.
Ela, menina, sentia sua mala vazia
Ladeira acima, uma mulher, sentia sua mala pesada...
Assim, ela caminhou, ela, o olhar e a mala

Caminhou, até se cansar
Até se sentir pronta.... para caminhar
Resolveu que seus dois carregamentos, estavam prontos para se encontrar!
Oxi.....
Levou a mala e o olhar à um lugar...
Indizivel
Na mala, encontravam-se,,, começos.. meios.... e fins....todos misturados e repetidos...
Ah... no olhar, cores, flores e amores

Sim....
Indizível
Mundos, distintos, complementares, singulares...
Indizível
Oticas, prismas, esferas, é isso que ela conhecia, mas o olhar não é isso
Nada, tudo, cheia, vazia, a mala está isso, mas não é isso....
Indizível, mas não invizivel, aliás, se percebia de longe, os olhos com malas e as mãos com doces...
Ah.....
Resmungou o matuto
A moça da mala cheia de doces...
Um olhar cheio de tudo
Joga com o vento, que pra não fechar os olhos, os proteje com as mãos, que agora livres...
Olha a mala, que ficou... no caminho lambuzada de doce ... no lombo de um burrico