terça-feira, 15 de setembro de 2009

O intrépido abraço

Seu Manoel era um daqueles velhinhos simpáticos. Parecia guardar nos bolsos de sua bermuda azul - a mesma de sempre, mais castigada pelo tempo que ele próprio - o vigor e o espírito dos jovens. Suas palavras carinhosas eram sempre seguidas por um largo sorriso branco, capaz de revelar todos os seus 32 dentes, ainda grandes e bem conservados. O sol, seu amigo e companheiro por tantos anos à beira mar, havia deixado sua marca amarela naquela pele um dia mais lisa e hidratada. Os olhos verdes revelavam tantos mistérios quanto simpatia e amorosidade. Seu Manoel tinha um segredo: ele sabia abraçar com o olhar.
.
Dona Júlia adorava fazer bolos. Para o entardecer vermelho, bolo de laranja. Para a alvorada azul, fubá. Seus dias eram assim, misturados ao cheiro quente vindo da cozinha. Ela era uma daquelas velhinhas lindas! Seus longos cabelos brancos estavam sempre presos em um coque, elegante mesmo quando seguro por grampos, desprovidos de suas presilhas - delicadas como ela mesma. Companheiras inseparáveis de Dona Júlia eram as letras. Mesmo aos 81 anos de idade, ela sentia suas mãos firmes vibrarem ao passar as páginas e seus olhos já cansados procurarem avidamente por aquele conjunto de símbolos, repletos de sentido. Dona Júlia tinha um segredo: ela sabia abraçar com as palavras.
.
Formavam um casal óbvio. Não havia como não imaginar haverem sido, os dois, nascidos um para o outro. Ambos pareciam fechar os olhos quando sorriam e dormiam antes do "felizes para sempre", quando assistiam a um filme. E era sempre no que o outro estava pensando em que pensavam eles - cada um consigo.
.
O outono se aproximava do fim, anunciando a chegada do inverno. E, no frio, era quase impossível segurar sozinho tanta bagagem. Eram 8 décadas de experiências e não dividi-las se tornava cada vez mais doloroso. Foi assim que, inevitavelmente, se descobriram Seu Manoel e Dona Júlia. A partir de então, os dias ganharam cores novas. E todos seriam dedicados ao abraço: enquanto Seu Manoel a olhava, Dona Júlia escrevia para ele.

2 comentários:

Elga Arantes disse...

Nossa, Luiza! Você demorou para voltar, mas veio com tudo, moça!!! Ficou lindo esse texto. Quanta delicadeza...

Um beijão.

Mami disse...

Querida filha, que texto singelo! Ele revela toda a sua delicadeza e sensibilidade além, do olhar transcendente. Você está se superando a cada dia. Como isso me alegra e nutre meu coração. Obrigada!
Beijo cheio de saudades,
Mami