quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O ar seco e os raios duros do sol recortavam a terra árida de um sertão escondido. Pouco ventava e o que era possível ouvir angustiava a alma. O silêncio se fazia Senhor e permitia, apenas à respiração ofegante, acompanhar os cascalhos se acomodando conforme a passagem da moça. Seus pés descalços, já grossos e emoldurados pela escassez nordestina, abriam o caminho longo que, quem sabe, poderia lhe levar a algum açude próximo. E a saia longa, amarrada por entre as pernas - leitos de rios azuis avermelhados que por ali não se via sequer de outra cor - por vezes arrastava a poeira para junto de si, misturando sua pele e sua roupa à paisagem sépia que parecia agora extensão de seu corpo. Os galhos retorcidos e abundantes se identificavam àquela única que se movia abaixo das poucos nuvens, espaçadas num céu alaranjado pálido. E o suor, escorrendo pelo rosto vermelho e triste, passeava pelo retrato do chão rachado, estendido à sua frente. O contato daquelas gotas com a superfície epidérmica, um dia mais feminina, servia para lhe aliviar o peso trazido em suas têmporas e chegava a lhe refrescar quando, inutilmente, o vento (pretensioso) tentava soprar por aquelas bandas. Em alguns momentos parava. Com um movimento de sua caixa torácica, introduzia em seus vasos e pulmões - rios e poços interiores - parte daquela aridez incômoda. Passava as mãos pesadas sobre a testa e retomava o passo trôpego. Ainda estava, incrivelmente, distante do azul líquido que procurava.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Ainda sinto um cheiro antigo na sala
O largo sorriso continua estampado pelos cantos
E o barulho das folhas, lá fora, ficou ensurdecedor
Talvez seja o silêncio encantado de sua voz ausente

A saída da última casa da rua com cheiro da canela lhe fez bem
Mora agora no quarto com vista para as estrelas
E lá do último andar, o céu cúmplice é seu companheiro
Fantasiam conversas a noite inteira

Dorme junto aos bilhetes e retratos colados no armário
E chega falando dos sonhos que teve durante a madrugada
Talvez seja a tranqüilidade de ver a menina morando ao lado
Mas é a partida misturada com chegada

Bem sei dos seus planos cheios de vida
E os olhos brilham ao falar dos caminhos a percorrer
A distância alimenta alegremente a saudade
Na esperança de encontros próximos durante o amanhecer.


* Este texto foi escrito por Raul Spinassé, o mais novo fotojornalista da cidade-cor: direto da cidade das águas.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Devaneios julinos

São dezessete cadeiras à minha frente. Todas vazias, reluzindo ao calor do sol o branco limpo de uma manhã sem nuvens. Do salão, posso ouvir o barulho da vida lá fora: são carros que se apressam, pessoas que se cruzam, um avião que passa, vozes que não calam. Posso ouvir nosso mundo de dez dias. Do refeitório chegam até mim sons de esperança. São sorrisos alegres que nos exclamam o verdadeiro - o todo é, realmente, maior que as partes. E não ouço nada dentro de mim. Chego a me perguntar se um dia já ouvi.
Aos poucos, as cadeiras são preenchidas, uma a uma, pelas mais lindas e coloridas jóias. Embora jovens, são elas imensos repositórios de qualidades e mudanças. São as pérolas da mudança. Uma criança sorri e correndo se dirige ao centro. Em suas mãos não há muitas linhas. São mãos tão lisas... Diferentes daquelas que me acompanham por vinte e um anos: mãos já calejadas, já marcadas, já castigadas. Nem parecem mãos de uma jovem. Sem ter elas qualquer culpa, sozinhas, são a única porta pela qual todo o meu mundo se revela.
Será essa minha única compreensão sobre o meu mundo? Linhas marcantes, frágeis, contínuas e recortadas.
Um cachorro late e me chama à realidade. O vejo magro e marrom atravessar a grade da porta de ferro. Olho para Raul e o sinto bem próximo a mim - é o seu sorriso revelador dos nossos segredos e planos. Olho para as suas mãos e as vejo firmes e seguras. Tranquila, suspiro aliviada, pela certeza de que serão essas as responsáveis por, nas minhas mãos, fazer o sertão virar mar.

terça-feira, 13 de julho de 2010

O menino segura em suas mãos uma bola
De longe, já posso vê-lo.
Momentos tão graciosos...
Bailarino que és, dança seu futuro
E comemora os doces suspiros
que por hora lhe são concedidos.

O menino lança as mãos para o céu.
É bola solta no ar
E quando, imensa e redonda, beija seus pés
Se abre em riso frouxo. Largo. Espontâneo.
Ansioso por conhecê-la por inteiro,
ele rapidamente a apanha e a toma em seu colo.

É quando percebe: há vida ali!
Tão perto de si...
Menino e bola dançam
E embora a princípio pareçam ouvir diferentes melodias,
já posso fitá-los em sintonia.

Há vida. E há também sintonia.
A bola, até aquele instante espelho de cor,
torna-se intensamente azul.

E o menino com sorriso nos olhos -
sabedor das alegrias por vir -
festeja o azul.
O maior que há no mundo!

Há vida aqui.
De dentro do menino vejo:
Há vida!
E ela é azul.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O que está em mim

Passos vagarosos em direção ao mar
A onda, o sal, o azul
Onda revolta que me leva plenitude
É a calmaria que se estende em meus braços
De suas águas salubres, oferece-me sal
Vida. Vida-Alma. Alma
É alma...
E todo o azul de seus mistérios
pretende esvair-se em espuma branca
E o pescador que por ali navega
abre os braços e lança a rede.

Por que escrever é tão difícil?
Às vezes, o mar precisa chover.
Estou chovendo.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Confissão

Nove meses em Maceió e posso sentir as dores do parto. A saudade de uma vida em Belo Horizonte (e que horizonte belo!) parece - a todo o momento - rivalizar com a atual meta e desejo de serviço à Causa de Deus.

É o clima fresco e limpo de BH que invade o ônibus alagoano enquanto vou para UFAL; é o cartaz colado na parede da Universidade anunciando os melhores cursos em uma cidade tão distante, lá para o Sudeste brasileiro (eita, Minas distante...); é o forró bem ao pé do ouvido, quando, sozinha, deito para dormir e me permito ir, por alguns minutos, às bandas mineiras; são as lembranças - inevitáveis, diria - de momentos deliciosamente mineiros. Às vezes, é o meu próprio sotaque, quando digo (poucas vezes, confesso) um uai firme em vez do (já) habitual eita.

Ainda não contei a ninguém. Portanto, leitor, guarde segredo. É que pelo menos uma vez ao dia passeio pela Raja Gabáglia. Quando me é possível, entro em alguns lugares e consigo voltar o tempo. São lembranças distantes e recentes: primeiro, a ida para o colégio, depois os sábados no Ateliê e as segundas ou quartas na Floricultura. Ah, caminho da roça...

E quando dali tenho que ir, sigo para a Prudente de Morais. Lá é onde jogo capoeira, onde sinto o frio na barriga ao pé do berimbau e a alegria contagiante das palmas e vozes negras na roda. É por ali também que chego à casa de meus avós. Vejam! Agora estão sentados tomando café. Vovô em sua cadeira de sempre e vovó ao seu lado - como todos esses anos. À frente deles, biscoito de polvilho, broa de fubá e manteiga. Ela bebe café com leite. Ele, só leite.

A alguns poucos quilômetros dali, encontra-se minha outra avó. É para onde vou. Em seu quarto, a vejo tricotando enquanto escuta as notícias pelo rádio. Algumas vezes precisa parar - é o telefone que toca e lhe rouba uns bons minutos. Gosto de debruçar na janela de seu quarto, principalmente quando a brisa fresca vem nos visitar. A depender do momento que assim faço, vejo Carol, lá embaixo na avenida, indo ao colégio. Ou meu pai a deixando logo cedo, pela manhã. Nessas horas, estou no banco de trás do uno azul, esperando a minha vez de ser deixada na escola.

Agora posso ver! Alguém mais vê? Você, leitor? Somos Carol e eu descendo a ladeira que nos leva da Barragem à Prudente. Calças brancas, cordão verde e cinza na cintura. "Berimbau chamou". É preciso seguir...

Subindo a Joaquim Murtinho, logo estou na Savassi. Savassi da Silvia, da espera do ônibus que nos leva à Santa Tereza ou à UFMG. Savassi da Getúlio Vargas, Cristovão Colombo e Contorno. Quando não estou muito cansada, passeio pelas suas ruas. Levo sempre alguém comigo: hoje estou com minha mãe. Daqui a pouco nos sentaremos para beber uma água e conversar. Aproveitamos esses momentos, tão rápidos, para matar as saudades.

Mais um tempinho e encontrarei com Ana em frente à Ginga. Iremos à Alfredo Balena (ouvem o barulho das pessoas nas filas e o cheiro de fumaça dos ônibus? É essa a região hospitalar, abraçada pelo Parque Municipal... Parque do Conexão Vivo, Vander Lee, Paulinho Moska e Curumin. Nos vejo na fila - enorme - esperando nossos amigos. Quanto tempo... As imagens estão um pouco amareladas... percebem? Já não vejo nada. Estou acolhida no melhor abraço do mundo e ganhei o cheirinho mais gostoso do Universo).

Na volta, Ana e eu - como sempre, juntas, inseparáveis - subimos a Nossa Senhora do Carmo. Avenida de domingos na Blunt com Gabri, ainda menino; de esperas em frente ao colégio às 12h50, de sol quente, bastante sono e fome incontrolável. De Ponto do Açaí e Raízes. Avenida que conduz minha amiga até a rua Universo e esta mesma rua aos forrós de toda a cidade! E por gentileza, leitor, você pode tapar os ouvidos agora? É que estamos falando tanta bobagem. Você vê como rimos? Tudo bem, deixaremos para conversar no forró - quando o som da zabumba, da sanfona e do triângulo nos permitirão tagarelar à vontade. "Mas, Ana, quero dançar!".

De vez em quando, visito a UFMG. Pouco antes, faço o trajeto rotineiro que me conduz de casa à Universidade. Passo pela Bento Simão e me vejo correndo: 32 minutos! E, nossa, como estou vermelha e cansada! Adoro esse bairro! Que refúgio... é o da minha casa. Nossa rua, nosso prédio, nossa vizinhança. Escuto as crianças brincando após as aulas: gol a gol, aventura, esconde-esconde. Somos nós, enquanto nossos pais não retornam do trabalho.

Na UFMG, às vezes, assisto aulas, outras converso com Karine, Ana e Jorge e sinto meu coração tão apertadinho (deve ser a saudade. Mas como, se com eles estou?). Almoçamos e rimos das histórias compartilhadas.

E já é hora de ir...

Aproveito sempre os últimos instantes para sobrevoar toda a cidade. É, leitor, em BH posso voar! (Mas isso também é segredo). Do alto da Serra, fecho meus olhos e salto de braços abertos, numa tentativa de abraçar cada lugar, cada canto e Recanto que faz parte de quem hoje sou. Rua do Amendoim, Praça do Papa, Mangabeiras, Sion. Anchieta, São Bento, Belvedere e Santo Antônio. Dona Clara, Mineirão, Mercado Central. Santa Tereza, Prado, Santa Lúcia e Cidade Jardim. Centro, Cidade Nova e toda a cidade! São tantas saudades. Incontáveis, inumeráveis, imensas.

Enquanto vôo sobre Belo Horizonte, levo um pouco de cada mineiro que pertence à minha história. Trago todos os dias um pouquinho de cada um deles dentro de mim (é onde posso guardá-los). E, leitor, de coração: não tenha dúvidas! Você também está aqui. Parte de você está comigo em outro canto do Brasil, me ajudando durante a adaptação à tapioca e ao cuscuz e me aconchegando quando minha companhia é a própria solidão.

E devo admitir a você que me acompanhou até aqui: minha fraqueza exige que o retorno seja lento, gradual. Do vôo em BH, aos poucos, alcanço o mar, passo por Salvador (minhas Minas Gerais na Bahia) e chego em Maceió.

Todos os dias, após alguns minutos, vejo-me no quarto: parede verde, armário no canto esquerdo, livros na estante. Você pode ver? Sento-me na cama, o quarto está escuro e ouço apenas o ventilador. Faço uma oração e vejo minha recente viagem transformar-se em borboleta. Tão linda...

Abro a janela e a permito voar. Livre...

Já posso dormir...

sexta-feira, 26 de março de 2010

Um mandarim estava apaixonado por uma cortesã. "Serei sua", disse ela, "quando tiver passado cem noites a me esperar sentado num banquinho, no meu jardim, embaixo da minha janela". Mas na primeira noite a cortesã se levantou, pôs o banquinho embaixo do braço e sentou ao lado do madarim: esperariam juntos.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ela disse adeus

Para luaR
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Era um campo enorme e verde. Dele ao longe podia-se avistar a imensidão azul do mar. A brisa era fresca e dava vida-alma a tudo que se permitia adentrar aquela realidade.
E havia uma casa. Desta, abria-se para fora uma única janela. Era o porto da menina, janela pela qual ela via o mundo e deixava que o sol a visse. As duas - casa e janela - eram já velhas, desgastadas pela força da luz que recebiam por tantos amanhecer. E embora frágil para os estranhos, era firme. E era especial. Ela guardava a menina com o sorriso da esperança e a tranquilidade da confiança em Deus.
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Todos os dias, logo cedo, a menina era convidada pelo sol a deitar-se sob o verde do campo, ainda úmido pelo sereno da noite anterior. Permanecia ali por um bom tempo. Transformava-se em parte daquela natureza enquanto mergulhava, tão ensimesmada, em sua própria. Costumava levantar-se e caminhar até a pedra mais alta, de onde contemplava, distante, o avançar e recuar da infinidade turquesa de um azul que abria-se em mar. Nunca havia se aproximado.
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Até que certo dia, a brisa - aquela mesma vivificadora de almas - soprou dentro da menina uma vontade grande. E era essa uma vontade tão intensa que não foi possível hesitar.
E a menina correu. Correu muito. Enquanto cortava, com seu próprio corpo, o campo cada vez mais fértil, sorria, assustada com sua própria coragem. Vez por outra, parada de braços abertos e olhos fechados diante do sol, amedrontava-se, sentindo-se pequena e alheia demais àquilo que ela mesma fazia. A brisa insistia em soprar e a menina dava passos cada vez mais rápidos e maiores.
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Tudo, naquele momento, eram seus passos. Rápidos, seguros, cheios de certeza. Não havia mais campo ou verde ou casa. Tudo era o avançar da menina em direção ao mar. Pressa. Silêncio. A brisa não mais soprava. Era o fim do caminho e agora ela estava ali na areia. Não havia vento, não havia som nem tempo. Vagarosamente e com o cuidado de um beija-flor que retira o mel da flor, ela passou pela areia e alcançou a água. Linda! Tão impressionante, tão magnética, tão transparente. Olhando para o mar, a menina se viu pelo reflexo. Imaginou-se, ela, em íntima comunhão com a imensidão azul. Apaixonou-se. Apaixonou-se pela certeza da união com o mar, pela sua tranquilidade e plenitude e apaixonou-se pelo amor que descobriu dentro de si. Ele que sempre estivera ali. Sempre quieto e calado. "Seria a sorte de um amor tranquilo?".
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Não havia ansiedade. Foi uma descoberta calma. A menina não mais corria ou tinha pressa. Tempo. Nesse primeiro encontro, contentou-se em molhar os pés, as mãos e o rosto e em olhar, profundamente, seu novo velho amor. Voltou para a sua janela e ficou a esperar o amanhecer, trazendo o convite do sol. "A brisa há de soprar novamente".
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Não soprou. Aquela bruma - e todos os outros ares - se importavam agora com um outro norte. Mas a menina, sem disso saber, continuava a esperar, desejando beijar com sua alma a água mais límpida já vista. Tempo, tempo, tempo. Nada.
O mar, distraído com sua própria existência, não percebia. Mas, apesar de distante, fez-se presente no desabrochar da menina. Deitada no verde campo, ela se enxergou. Viu cicatrizes, saudades e imperfeições. Gostou de si. Pensou que sobreviveria a tudo que pudesse lhe causar dor e confiou em Deus.
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Nesse mesmo dia, logo quando o sol se despediu do céu para nascer em um outro horizonte, ela se dirigiu ao mar. Não correu. Serena, atravessou o campo, sentiu a areia e fitou tudo ao seu redor: o mar estava a beijar a lua. Era o luar mais acolhedor que poderia existir. Mar e lua eram um único ser e aquele espetáculo de cor fez vibrar o coração da garota. Ela, aos poucos, se fazia mulher e via sua certeza transformar-se em paciência. Dirigiu-se a água, molhou os pés, as pernas, a barriga, os braços, o rosto... Mergulhou por inteiro e se fez mar aquela noite. Admirou o luar como nunca fizera antes e guardou, em si, cada sensação, pois sabia da saudade que sentiria após aquele último encontro.
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Saiu calmamente da água. Tateou a areia e chegou à terra firme. Passou pelo campo e voltou para a casa. Fechou a porta e abriu a janela. Pensou em chorar, mas alegrou-se pelo que vivera e pelo o que estava por vir, longe de tudo aquilo.
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Por muitos anos, ainda subia a menina na pedra mais alta para admirar o mar. Ela não iria mais à praia, mas contentava-se em esperar o anoitecer, só para ver a lua se aproximar e deitar, amarela, sobre as ondas. A menina estava feliz. E logo descobriria um novo amor. Amor para amar. Amor para amar o mar.