terça-feira, 21 de junho de 2011

Diário de campo


Era uma sexta-feira, no fim da tarde, quando o sol se deitava sobre a estrutura branca e recortada do Mercado do Peixe, parecendo amenizar o odor fétido vindo do canal recém reformado. Por entre as sombras que se formavam no espaço destinado às mesas de plástico laranja, ocupavam seus lugares o João, a Maria, o Marcelo e tantos outros que ali, assiduamente, freqüentavam. E, à medida que a luz amarela natural era substituída por um azul petróleo da noite, iluminado pelas lâmpadas do próprio Mercado, o silêncio testemunhado durante poucas horas da tarde cedia lugar às calorosas conversas de funcionários públicos, jovens universitários, trabalhadores braçais e do terceiro setor e de muitos outros, que invadiam o ambiente e se misturavam às ofertas dos garçons: “dobradinha, sarapatel, agulhinha!”, caracterizando como descontraído, popular e, por isto mesmo, charmoso o happy hour com os amigos.


Embora venha de outro estado e, ainda mais, seja novata neste universo tipicamente baiano, mas que se repete com as devidas adequações em diversos outros lugares do Brasil, observava – nesta mesma tarde – um caráter duplo do tradicional Mercado do Peixe e, com meus botões, enquanto ouvia duas colegas se apropriarem (com desenvoltura, segundo a minha pouca experiência) das técnicas de pesquisa qualitativa, utilizando-se de um roteiro semi-estruturado para sua entrevista, aproximava o famoso Mercado Central, tão mineiro como apenas ele, daquela realidade que se me apresentava.


Dois redutos de tradições e costumes que, autenticamente, demonstram contemporaneidade e certa sofisticação: era a conclusão a que chegava após percebê-los como fortes instrumentos de resistência (ainda que não desvinculados) a uma cultura de lightização dos padrões alimentares e corporais. Contemporâneos pelo seu caráter boêmio; sofisticados pela valorização do tradicional, daquilo que agora se faz diferente e incomum. Representam, assim, cada um em sua cidade, espaços sociais onde se permite “esfriar a cabeça” com uma cerveja gelada e esquecer o controle ditador de regras e passos para uma vida saudável.

Agora, alguns dias depois desta visita, me esforço por lembrar o nome do único entrevistado que silenciosamente acompanhei. E percebo certa ironia ao recordar apenas o seu peso: 108 kg. Sem conhecer devidamente o roteiro elaborado para a pesquisa em questão, a cada contradição e engasgo emitido pelo jovem de 23 anos que se propôs a colaborar com nosso trabalho, eu ansiava por perceber as nuances de suas respostas e as entrelinhas que poderíamos, posteriormente, desenvolver.

Percebia, então, algo sutil a revelar-se em seu humor, presente durante quase toda entrevista, sobretudo quando o questionamento parecia incomodá-lo ou fazê-lo refletir sobre suas escolhas e a maneira de perceber e lidar com o próprio corpo; em seu modo de concluir as frases com um “?”, ora direcionado aos seus amigos (nenhum acima de 80 kg), ora direcionado às entrevistadoras; e em sua firmeza e segurança ao definir-se distante das exigências estéticas, internalizadas como únicas e obrigatórias pela maioria. Percebia, também, as estratégias utilizadas para justificar suas dissonâncias, quando ele mesmo parecia notar-se contraditório. Desta forma, a cirurgia bariátrica pôde ser explicada com a incansável insistência de sua mãe, preocupada – antes de tudo – com a saúde do filho; a manutenção de seu peso corporal, a despeito da insatisfação confessada após alguns bons minutos de conversa, pôde, por sua vez, ser atribuída ao maior valor conferido aos momentos de descontração com os amigos (sempre em uma mesa de bar) e; finalmente, o sedentarismo justificado como um fim inescapável já previsto para sua vida – ele, que desde criança era o gordinho da turma, nunca se enxergou capaz de mudar seus consolidados hábitos.

À medida que juntos, sutilmente, construíamos estas percepções, nos aproximávamos daquele raciocínio que conduziria aos significados e sentidos relacionados à noção de “corpo” – principal objeto de análise do estudo. E assim, ao reconstruir o momento, vejo agora a imensidão de subjetividades impregnadas na tentativa, quase frustrada, de definir o conceito: “ah, corpo, corpo... difícil. Corpo é aquilo que carrega... (...); acompanha. Sei lá, não sei. Essa a gente pula”.



PS. Este texto é um diário de campo feito a partir de vivência proporcionada pelo projeto Corporalidade e Comensalidade, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura - UFBA.